A história da minha vida...
... muito provavelmente porque eu não sou competente pra fazer a minha ironia ser compreendida.
A dura vida da bailarina
02.11.2004 | Uma vez jurei, acho que aqui mesmo, que iria seguir o conselho de Carlos Lacerda, segundo o qual não se deve usar ironia ao escrever na imprensa. Ele alegava que, para a interrogação, havia sinal (?), para a exclamação também (!). “Mas para a ironia não existe ponto”, ele acrescentava. Alguém poderia perguntar: “e os três pontinhos (...)?” Estes, na verdade, são de reticências, o que é outra coisa. Falando, a gente ainda encontra recursos na entonação, na ênfase em alguma palavra, num piscar de olho, enfim, qualquer coisa que queira sinalizar para o ouvinte: “Olha, eu quero dizer o oposto do que estou dizendo”. Ou então: “Isso é gozação, não leia ao pé da letra”. Mas escrevendo, não tem jeito.
Há várias histórias de interpretação equivocada, de mal-entendidos, de tiro saindo pela culatra. Me lembro de uma, hilária, com Luis Fernando Veríssimo. Um dia, vocês vão identificar a época, ele começou uma crônica no Globo assim: “Quem o Lula pensa que é, tomando Romanée-Conti? Gente! O que é isso? Onde é que estamos? Romanné-Conti não é pro teu bico não, ó retirante. Vê se te enxerga, ó pau-de-arara. O teu negócio é cachaça. O teu negócio é prato-feito, cerveja e olhe lá. A audácia do Lula!”
Claro que era uma ironia, alguma dúvida? Então vejam as cartas no dia seguinte: “... fiquei indignada com o tamanho do preconceito desse intelectual”. Outra: “Eu e minha família estamos indignados com a opinião do Verissimo”. Mais uma: “como pode um escritor do quilate, do berço, da inteligência e da elite do Verissimo escrever um texto racista e elitista?”. É claro que houve quem entendesse, mas o número e a virulência dos que não entenderam obrigaram o grande cronista a dar uma nota embaixo das cartas e a escrever outra coluna no dia seguinte.
Na nota, ele dizia: “quando o leitor não entende o que um jornalista escreveu, a culpa é sempre do jornalista. Peço desculpa a quem não entendeu a intenção da coluna”. No novo artigo, “Da ironia”, ele explicava: “Escrever com ironia é um pouco como escrever em código: a comunicação só funciona se na outra ponta houver um decodificador. Quem se mete a escrever irônica ou satiricamente precisa saber que nem todos têm o decodificador”.
Pois bem. Na última semana me meti a fazer ironia. Gozando a frase de Duda Mendonça – “ o Brasil inteiro sabe...” – escrevi: “o Brasil inteiro sabe que eu sou careca”. Como não tinha dúvida de que a afirmação era um absurdo, como tinha certeza de que o Brasil inteiro não me conhece (com a insignificante exceção de meia dúzia de pessoas que me viram em foto ou na televisão), achei que estava fazendo graça por contraste. Humor tipo nonsense.
Não vou dizer que ninguém entendeu; acho até que a maioria sacou. Mas de qualquer maneira, recebi e-mails de protesto, embora sem a virulência dos leitores do Veríssimo, felizmente. Ao contrário, foram muito delicados. Um perguntou: “Não é pretensão demais afirmar que o Brasil inteiro sabe que você é careca? Isso implicaria em reconhecer que o Brasil inteiro sabe quem você é e, mais ainda, todos conhecem a tua fisionomia. Infelizmente isso não é verdade, o que é uma pena” (simpático da parte dele lamentar que isso não seja verdade, né? Ou seria ironia?).
Resolvi contar tudo isso para que o Brasil inteiro saiba como é dura a vida da bailarina. (Atenção, isso é ironia, até porque o Brasil inteiro sabe que eu não sou bailarina. Apesar do nome.)
zuenir@nominimo.ibest.com.br
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